domingo, 7 de junho de 2009

Toquinho


"Sou eu que vou seguir vocêDo primeiro rabiscoAté o be-a-bá.Em todos os desenhosColoridos vou estarA casa, a montanhaDuas nuvens no céuE um sol a sorrir no papel..."Ia tudo muito bem, aquela nostalgia clássica de quem foi criança nos anos 80, relembrando a capa do disquinho e a sensação de ouvir aquela voz gostosa falando alguma coisa sobre um tal de caderninho, que bem parecia com os meus caderninhos, mas eu não tinha consciência ainda para saber que eram exatamente os meus caderninhos. Caderninhos que acompanharam a minha vida inteira, repletos de anotações coloridas, de desabafos escuros, de frases copiadas, de poesias inventadas, de segredos reinventados em códigos que até hoje eu sei.Que eu nunca esquecerei.Mas foi então que o Toquinho sussurrou com sua voz doce o trecho mais cruel que provavelmente ele já sussurrou na vida. E me doeu perceber que ele sempre sussurrara tal maldade em meus ouvidos e eu escutava, ingênuo e crédulo, julgando serem apenas palavras bobas de uma canção lúdica de criança, mas era e sempre será uma centelha de vida, em verdade, era o anúncio, era o aviso, era, de certa forma, o meu veredicto, que só eu ainda não conhecia e que só o Toquinho tinha coragem de pronunciar."Sou eu que vou ser seu amigoVou lhe dar abrigoSe você quiserQuando surgiremSeus primeiros raios de mulherA vida se abriráNum feroz carrosselE você vai rasgar meu papel..."Tudo bem,ainda não virei mulher, mas rasguei muitos papéis sem lembrar que eles estavam destinados a isso. Sim, os cadernos, os meus caderninhos, sempre foram o meu abrigo, a minha forma de escapar e de entender o carrossel que me engolia. Eu ia me modificando e os cadernos iam se modificando, os antigos modificavam os novos, eu ia modificando os cadernos e é óbvio que os cadernos, folha a folha, linha a linha, iam modificando a mim. Escutei hoje no ônibus novamente aquela voz sussurrada, aquele prenúncio de futuro, que não é mais um futuro, que sou eu, feito de sussurros de carrossel de cadernos e de milhões de folhas rabiscadas rasgadas,inteiras,molhadas,publicadas,queridas,odiadas.A vida não é um brinquedo inocente. A vida nos deixa tontos. A vida é o que o Toquinho me mostrou que seria e eu fico feliz de não ter entendido antes. Ele nem queria que eu entendesse. Ele queria apenas acariciar o que eu era. Ele queria, apenas, louvar o que eu seria, antes de todo mundo. Ele queria, quem sabe, como eu também quero, que um dia alguém se soubesse modificado por suas palavras.E os meus cadernos seguem comigo. Essa música desenvolveu em mim um absurdo colecionismo. Ele me pedia para não esquecê-lo em um canto qualquer e eu jamais poderia mesmo fazê-lo. Ainda tenho os meus cadernos. Fico angustiado cada vez que penso nas traças e no mofo que podem estar os consumindo. Não tenho coragem de abri-los. Não quero me ver corroído. Não quero me ter esquecido. Posso fazer terapia para perder o medo insuportável da morte, para aprender a conviver com ele, mas não posso fazer terapia para esquecer o que sou. Meus cadernos são eu. Desculpe. Mas eles são eu.E eu sinceramente acredito que um dia as pequenas mãozinhas dos meus filhos irão folheá-los. E lê-los irá modificá-los. E vê-los ler fará de mim, então, diferente....esperançoso, me fará "ter fé e ver coragem no amor..."

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